quarta-feira, 16 de maio de 2012

As GAIVOTAS e o ROLEX

Da série: ACONTECEU COMIGO.

Em 1962 eu tinha 8 anos e gostava muito de freqüentar a agencia de automóveis que meu pai tinha na época.

Naquele sábado a loja estava praticamente vazia (com apenas um Gordini semi-novo cheirando a tinta e um Fusca 1962 verde-garrafa zero km) o Aero-Wyllis do pai estava estacionado lá fora.

Como todo sábado, após o almôço a loja era fechada e acontecia uma reuniãozinha entre amigos, onde o sr. Emydio tocava violão e cantava músicas de Carlos José, e meu pai conversava sobre negócios com o sr. Geraldo “Pancinha”, tudo isso regado a algumas garrafas de White Horse que eu adorava, pois ganhava os micro-cavalos-brancos de plástico que vinham “amarrados” nos gargalos das garrafas do whisky.

Esse senhor que chamavam Geraldo Pancinha, era um vendedor de carros de Muriaé em Minas Gerais, especializado em Impalas (ele só negociava Belairs e Impalas). Quem quería um Impala zerado ou um semi-novo enxuto, fazia contato com o Pancinha que ele conseguía no Rio, em Minas ou em São Paulo. Ele viajava muito, sempre levando ou trazendo Impalas.
Logicamente, esse apelido Pancinha era devido à sua avantajada… pancinha.

Voltando ao início da nossa história, eu estava me divertindo jogando gaivotas de papel (em alguns lugares do Brasil se chamam aviõezinhos) pela loja, quando de repente uma delas caiu na calha de lâmpadas fluorescentes que era sustentada por correntes, de forma que ela (a gaivota) “pousou” suavemente como se eu tivesse planejado aquilo. Achei muito legal “eu ter feito aquele pouso”. Mas o que me trouxe de volta à realidade foi a voz “enrouquecida” do senhor Geraldo falando comigo.

Ele disse:
“- Se você colocar de novo uma outra gaivota na luminária, eu te dou um Rolex de ouro da mina coleção!”

Ah, o sr. Geraldo colecionava relógios Rolex de ouro.

Eu perguntei:
“- Quantas chances o senhor me dá prá eu tentar?”

Ele respondeu:
“-Você pode tentar 100 vezes!”

Uau! Eu, um garoto de 8 anos com um Rolex de ouro só meu…!!!!! Comecei a sonhar com aquilo e me sentindo a criança mais rica do mundo. Talvez eu pudesse comprar um carro de verdade para colocar na garagem lá de casa para usar quando crescesse… talvez eu pudesse comprar 10 bicicletas e 100 autoramas… sei lá, não importavam muito os detalhes, desde que eu me tornasse milionário com aquele relógio (era assim que eu imaginava quem tinha um Rolex, pois o Geraldo Pancinha era muito rico).

98, 99, 100 e nada de conseguir “aterrissar” a bandida da gaivota.

Na tentativa de nº 101 eu consegui repetir o feito. A gaivotinha ficou na calha. Fui correndo até o escritório e entrei triste e falante contando minha decepção:

“- “Seu” Geraldo. Eu consegui colocar a gaivota na “lâmpada”. Só que não foi nas 100 chances como o senhor disse. Foi na 101.”

“- Tá certo, garoto. Vou te dar o relógio. Você mereceu!” Foi a resposta dele.

Eu ainda retruquei, preocupado dele pensar que eu estaría trapaceando:

“ – Mas não foi nas 100 vezes…”

Neste momento meu pai reconhecendo que os cavalos brancos (whiskies) estariam dando coices no cérebro do pançudo Geraldo, tentou dissuadí-lo daquela “exageralda” premiação, mas Pancinha ficou firme e insistiu no “cumprimento da palavra”.
Foi aí que me tornei o feliz proprietário de um lindo exemplar do mais legítimo tesouro que um serzinho humano poderia obter (segundo o meu entendimento na época).



Hoje em dia, quando posso, fico atirando gaivotas de papel na calhas das agências de carros.
Mas não as pouso mais.
... Nem escuto nenhum Geraldo me desafiando a ganhar outros Rolex...

Acho que vou desistir.


Notas da Redação:
O senhor Geraldo faleceu anos depois, em um acidente de carro voltando para Muriaé ao volante de um Impala (seus Impalas tinham sempre alguns cavalos a mais, e geralmente eram brancos…).
Meu pai após o golpe militar de 1964 não conseguiu mais se levantar financeiramente e em 1978 aos 49 anos foi morar com Deus.
Meu precioso Rolex, foi dado por presente de aniversário a um tio meu, a pedido do meu querido pai, com a intenção de me comprar outro igual em seguida, o que acabou não acontecendo por falta absoluta de condições. Ele, o relógio, não me faz falta, mas ele, o meu pai esse sim faz muita.

Abraços.